“Para que se cumpra a escritura”
No intuito de fazer ‘teologia pública’, trato aqui de uma questão que muitas vezes me é apresentada: algumas frases do Novo Testamento qualificam a morte e ressurreição de Jesus como ‘cumprimento’ das Sagradas Escrituras ou das Profecias (do Antigo Testamento), como se Deus tivesse predeterminado tudo.
Ora, se fossem predeterminações, onde ficaria o livre arbítrio? Que significa que a traição de Judas estava ‘predita’ nas Escrituras (cf. Atos 1,16-20)? Tinha de acontecer? A meu ver, não. Só se Judas quisesse…
Na realidade, podemos chamar essas referências às antigas Escrituras de ‘constatações significativas’: constatam que aconteceu a Jesus, ou em torno dele, algo que tem uma ‘prefiguração significativa’ no Antigo Testamento. O Antigo Testamento oferece o modelo; o Novo, o cumprimento, o ‘sentido pleno’.
Assim, o fato de não serem quebradas as pernas de Jesus crucificado (João 19,33-34) possui um modelo significativo no Antigo Testamento: os ossos do cordeiro pascal não são quebrados (Êxodo 12,46). Para judeus piedosos, como eram os primeiros cristãos, essa lembrança do Êxodo significa que Jesus é o cordeiro pascal. E este está ligado à memória da libertação do povo (Êxodo 12,25-27). Além disso, Jesus é apresentado por João Batista como “o cordeiro que tira o pecado do mundo” (João 1,29), lembrando os cordeiros dos sacrifícios judaicos. Além disso, o Salmo 34(33),21 diz que não se quebrarão os ossos ao justo, significando que ele é salvo por Deus: mais um sentido que se acrescenta ao anterior. Assim, esse simples detalhe narrativo dos ossos não quebrados vale meio tratado de teologia!
Este é um pequeno exemplo do modo simbólico como os primeiros cristãos faziam teologia: imagens de sua escritura sagrada (Antigo Testamento) recebem um sentido mais rico e definitivo em Jesus de Nazaré (definitivo, para quem crê que Jesus inaugurou a manifestação definitiva de Deus). Assim, o que Deus iniciou no tempo das Escrituras de Israel (o Antigo Testamento), agora recebe seu sentido pleno e é levado a termo (Novo Testamento).
Muitas dificuldades que temos com a expressão “para que se cumprissem as Escrituras” desaparecem quando a substituímos por “assim se cumpriram” ou “de modo que se cumpriram”, pois nas línguas bíblicas a diferença entre intenção (‘para que’) e efeito (‘de modo que’) não é muito grande.
Observe-se também que o sentido que os discípulos viram nas antigas Escrituras só ficou claro com a fé em Jesus, depois de sua morte e ressurreição. É como se, pela luz da morte e ressurreição, as Escrituras ‘se abrissem’ para eles. Assim aconteceu aos discípulos de Emaús, quando Jesus, caminhando com eles, “explicou-lhes em todas as Escrituras as passagens que se referiam a ele” (Lucas 24,27), de modo que disseram: “Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (24,32). O evangelista João menciona que ‘post factum’ que as antigas Escrituras falavam num certo sentido daquilo que aconteceu a Jesus. Por exemplo, quando Jesus expulsou os vendilhões do Templo, o evangelista observa que o Salmo 69(68) diz: “O zelo por tua casa me devora” (João 2,17). Mais tarde, depois da ressurreição, os discípulos se lembraram disso, e também da palavra de Jesus sobre o Templo que é seu corpo (João 2,21). Coisa semelhante aconteceu com a entrada de Jesus em Jerusalém (cf. João 12,16).
Esses exemplos nos ensinam a ler a Escritura não apenas de modo linear, mas de trás pra frente, olhando de Jesus para o Antigo Testamento. Depois que aconteceu tal ou tal fato, descobrimos, olhando para trás, que é desse jeito que Deus cumpre o seu ‘desígnio’, nossa salvação por Jesus. Fatos que à primeira vista parecem escândalo ou fracasso (a crucificação, a traição) se revelam como o modo próprio de Deus de conduzir as coisas, já visível nos textos das Escrituras antigas. Percebemos semelhanças significativas dos textos antigos com o que aconteceu com Jesus.
Será que os primeiros cristãos conheciam a Bíblia o suficiente para compreender tudo isso, que a nós causa confusão? Sim, pois muitos dentre eles eram judeus e conheciam a Escritura antiga pela leitura cada sábado na sinagoga (cf. Atos 15,21). E o sentido novo, os apóstolos e seus discípulos o explicavam. Também hoje, os cristãos –tanto católicos como protestantes– que vão cada domingo à missa ou ao culto, ouvem trechos do Antigo e do Novo Testamento e aprendem a iluminar um pelo outro. Pelo menos, se há um bom pregador…
Para os interessados: minha Faculdade oferece cada mês “Tira-Gostos Bíblicos”, ou seja, um cardápio variado de esclarecimentos bíblicos, o próximo sendo no dia 15/04 (20h), sobre os Profetas e os Livros Históricos do Antigo Testamento. (Info: website Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologiaique por dentroeventos ou tel. 031-3115-7012 ou 7013).
Johan Konings